Endometriose
Endometriose: doença silenciada
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 7 milhões de pacientes no Brasil foram diagnosticadas com endometriose. Mundialmente, são 176 milhões de diagnósticos
Imagine ser chamada de louca por sentir dor. Ter a vida sexual questionada e ouvir de vários médicos que o sofrimento é natural. Essa é a realidade de 3 entre 5 brasileiras que sofrem com a endometriose, doença crônica incurável. Subnotificada, a idade média para o diagnóstico da doença é 32 anos, idade na qual 40% das pacientes já conviviam com a endometriose por cinco ou mais anos.
foco de endometriose
Kathiane Lustosa
ovário
A endometriose é uma doença crônica incurável, na qual as células do endométrio (mucosa que cobre as paredes uterinas) crescem em outras áreas do corpo, como no colo do útero, trompas uterinas, ovários e intestino.
ginecologista especialista em endometriose e em ginecologia minimamente invasiva
endométrio
foco de endometriose
foco de endometriose
trompa uterina
intestino
Caso parecido é o de Amanda Souza. Aos 12 anos, um ano após a menarca, a cientista de dados passou a ter fortes cólicas menstruais. Como recomendado, as visitas aos ginecologistas viraram rotina após a primeira menstruação e nelas Amanda mencionava as dores intensas. Entretanto, a resposta médica parecia padrão: dor menstrual é comum, a solução é tomar medicamentos. Foi apenas há dois anos, já com 27, que ela obteve o diagnóstico de endometriose.
Determinada a causa das dores, o tratamento com anticoncepcionais começou. Ela relata que as dores continuam presentes, mas leves. Entretanto, para quem passou 15 anos (o equivalente a aproximadamente 180 ciclos) em agonia, a dor leve é lucro. Por outro lado, a força do sangramento mensal é lembrada por Amanda como uma ameaça. “É uma dor horrível, que te para. Se eu parar de tomar anticoncepcional esse mês, quando vier a menstruação, eu já sei como vai ser.”
Kathiane Lustosa
Existem duas teorias para explicar a proliferação de células de endométrio em outras áreas do corpo:
1. Menstruação retrógrada:
o sangramento ocorre nas trompas de falópio e escorre para o resto corpo.
2. Metaplasia:
Células normais se alteram e viram células endometrióticas.
A ginecologista especialista em endometriose e em ginecologia minimamente invasiva Kathiane Lustrosa explica que procedimentos cirúrgicos que propiciem o contato do endométrio com o exterior do útero podem provocar a doença. É o que Erika Teodósio, 35, suspeita como motivo para a intensidade atual da endometriose identificada em 2018.
Onze anos após o nascimento da filha por parto cesárea, a estudante universitária voltou a tomar anticoncepcional, medicamento introduzido aos 22 anos para aliviar enjoos e dores consequentes da menstruação. Em fevereiro de 2018, Erika decidiu cortar o fármaco. “Eu queria ver meu corpo de verdade”, conta. Para além de ver, ela pode sentir as dores que eram abafadas pelo anticoncepcional. “Eu ficava inválida de dor. Era uma dor maior do que a que senti nos quatro centímetros de dilatação no parto da minha filha, antes de ir para cirurgia por um descolamento de placenta.”
Em agosto de 2018, o anticoncepcional voltou para a rotina de Erika, dessa vez ininterrupto. Nos seis meses sem medicação, a estudante sentia dores ao defecar e urinar, em algumas posições sexuais e na área umbilical. O estágio da endometriose avançou a ponto de um cisto crescer no umbigo. Durante os períodos menstruais, o cisto inchava, repleto de sangue igual ao menstrual.
Após realizar alguns dos exames cobertos pelo plano de saúde, a endometriose de Erika foi diagnosticada. Infelizmente, ela ainda aguarda pela oportunidade de realizar o mapeamento de endometriose - espécie de ultrassom mais detalhado para identificar focos de endométrio -, exame ausente do plano de saúde. A falta do exame atrasa o tratamento cirúrgico recomendado para a estudante, no qual os focos da doença são retirados cirurgicamente.
Kathiane Lustosa
É sabido que a endometriose tem traços genéticos, mas o gene que data a doença ainda é um mistério para a medicina. Por outro lado, já determinou-se que irmãs e primas de pessoas com endometriose estão propensas a desenvolver a doença.
A importância de falar e acolher
A endometriose está longe de prejudicar apenas a saúde física das pacientes. A ideia de que a dor menstrual é comum e que ela deve ser intensa promove cultura do silêncio e tolerância com sofrimentos anormais. Ponto comum entre os relatos de mulheres com endometriose é ouvir dos médicos que os protestos são exagerados, além de eles questionarem o interesse sexual delas com parceiros e/ou parceiras, já que as dores durante atos sexuais são comuns.
Muitas contam terem sido chamadas de loucas, evidenciando como alguns aspectos do olhar médico para a saúde feminina continuam os mesmos dos séculos XIX e XX. O período corresponde aos primeiros estudos sobre a saúde feminina que encaravam as doenças das mulheres como sendo muito difíceis de tratar por considerarem as mulheres histéricas.
Por isso, o tratamento da endometriose requer equipe multidisciplinar, principalmente com presença de psicólogas. Falar sobre a doença, desmistificá-la e acolher mulheres são os principais objetivos do projeto Mulheres e Novelos, da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). Coordenado pela professora Tatiana Zylberberg, profissional de Educação Física, o projeto surgiu da experiência da própria Tatiana.
54%
das brasileiras desconheciam a endometriose em 2014
“Eu sou uma daquelas mulheres que começou a ter cólica menstrual aos 13 anos e com quase 35 foi ter um diagnóstico de endometriose que explicava todas aquelas dores inexplicáveis ao longo de anos, de várias passagens no Pronto Socorro. De várias vezes, inclusive, ser questionada se, por sentir aquela dor, mas ninguém achar nada nos exames, ela [a dor] não era algo somente de cunho emocional.”
Após ter um aborto espontâneo desencadeado pela endometriose, Tatiana lançou um livro autobiográfico sobre a vivência com a doença. Mulheres e Novelos: desentrelaçando a endometriose e a maternidade foi lançado em agosto de 2013, mês em que o bebê da agora escritora nasceria. Além dos relatos de Tatiana, outras mulheres tiveram a oportunidade de ter suas histórias contadas na obra.
Foi por meio do contato com uma leitora, dois anos depois da publicação da obra, que a professora percebeu a importância de falar sobre experiências com a endometriose. “Quando ela veio me conhecer, trazendo flores, eu percebi que eu não tinha mais tanta dor”, relembra. Em 2016, então, o Mulheres e Novelos surgiu como projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), para produção de vídeos para o YouTube de linguagem “sensível e didática” sobre questões que permeiam a vida da mulher com endometriose.
O projeto chamou atenção da Meac e já está no terceiro ano de ação presencial de escuta das pacientes do Ambulatório de Dor Pélvica. Em 2017, foram 60 mulheres acolhidas que começaram a ser acompanhadas pelo Mulheres e Novelos. No ano seguinte, o número subiu para 100. Somente no primeiro semestre de 2019, 40 mulheres já foram amparadas.
Depois de serem atendidas presencialmente, as participantes são adicionadas em um grupo de WhatsApp que contava, em junho de 2019, com 95 mulheres. “A gente vai dialogando sobre os nossos momentos, as dúvidas, as angústias. É também uma maneira de ajudar as mulheres do interior a saírem da solidão; ajudar com que elas se apropriem mais [das suas histórias], que elas possam ser ouvidas e possam ensinar a comunidade delas sobre endometriose”, explica Tatiana.
Você sabia?
Março é marcado como Março Amarelo, mês de conscientização sobre a endometriose. É quando ocorre a Marcha Mundial de Conscientização da Endometriose (Endomarcha). A sexta edição do evento ocorreu em 2019 e obteve adesão de mais de 70 países. Destes, o Brasil liderou o número de cidades inscritas, com 20 municípios participantes! Além de conscientizar a população sobre a existência da doença, a Endomarcha objetiva o reconhecimento da endometriose como doença social pela classe política, permitindo a criação de políticas públicas voltadas para pacientes dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS).
76%
é a probabilidade a mais de risco de aborto em pessoas com endometriose