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Quem menstrua

não só mulheres 

Menstruação não é só uma "coisa de mulheres". Algumas mulheres não menstruam por uma variedade de fatores e condições médicas; outras, por serem transgênero ou intersexo. Ao mesmo tempo, há pessoas que menstruam e não são mulheres. Homens trans, homens intersexuais e pessoas não-binárias passam pela menstruação ao menos em algum momento de suas vidas. A ginecologista e sexóloga Débora Britto explica que "menstruar é um processo biológico associado ao desenvolvimento de caracteres sexuais relacionados ao sexo biológico feminino". Assim, "com relação a identidade de gênero, as mulheres cisgênero, os homens transgênero e alguns grupos da população que se identificam como não binários menstruam, desde que em idade reprodutiva e sem questões que possam bloquear os ciclos ovulatórios", completa.

Kaio Lemos, presidente da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce), explica que “além das dores e do desconforto físico, a menstruação remete ao feminino, ela comprova que seu corpo é biologicamente feminino”. Por conta disso, alguns homens transexuais costumam chamá-la de monstruação. Em sua experiência clínica, Débora conta que o desconforto com a menstruação nem sempre é relatado, “muitas vezes depende do grau de disforia desse homem com relação a suas características relacionadas ao sexo biológico feminino”. Assim, no seu dia a dia, ela atende desde homens trans que não manifestam desconforto, até outros com queixas importantes de mal estar.

“A menstruação está, biológica e socialmente, conectada ao corpo dito feminino.

Não se pensa em um corpo masculino menstruando. Então, não estamos falando unicamente de um sangue jorrando, nós estamos falando de dores físicas e também psicológicas” - Kaio Lemos, presidente da Atransce

O cineasta Diego Leal conviveu por onze anos com o período em uma relação entremeada de incômodos, irritação e respeito. “Minha primeira menstruação veio aos 13 anos e foi um choque para mim pois foi aí que eu percebi que eu não queria passar por meu corpo se modificando para formas mais femininas”, conta. “Lidar com minha mãe me chamando de mulher de verdade também foi bem complicado.”

Com o tempo, Diego foi convivendo com ela de “modo indiferente”, mas o uso de absorventes, a privação de ir à praia ou o cuidado de não usar roupas mais claras durante esse momento do mês o irritavam. Depois da transição, o cineasta conta que ficou “mais disfórico em relação a menstruação”. “Não queria passar por esses dias e, quando tinha que passar, eu tentava não ficar pensando muito nisso para não ficar mais ansioso", relembra. Hoje ele vive outros sentimentos. “A minha relação com ela é de tolerância e depois de respeito à importância que ela tem para um corpo biologicamente feminino, mas optando por não menstruar por conta do hormônio”, explica. Há três meses, Diego está em processo de hormonização e o sangue vem parando de descer.

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“A lembrança marcante mais recente que tenho sobre menstruação foi comprar absorvente na farmácia no primeiro mês da transição hormonal e algumas pessoas ficarem me olhando” - Diego Leal, cineasta, 24 anos

Todos os meses Kaio se preparava para as dores e desconfortos físicos e também para o medo de ser denunciado pelo próprio corpo. “Eu passava dias em casa, evitava sair. Tinha a sensação de que a monstruação ia me denunciar o tempo todo, que meu corpo seria denunciado”, relembra. “É um período muito desconfortável pelas cólicas e também pelo uso do absorvente, pelos analgésicos que te deixam dopado, pelas sensibilidades afloradas; por tudo isso que às vezes dura três dias, mas outras vezes dura uma semana.” Há quatro anos, ele não precisa mais conviver com tal processo graças à testosterona injetada a cada 20 dias.

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A terapia hormonal é o processo no qual os homens trans passam a administrar testosterona em seus corpos, por injeção intramuscular ou aplicação na pele. O uso do hormônio desenvolve características ligadas ao gênero masculino, como:   

 - crescimento e engrossamento dos pelos faciais e corporais;

- aumento da massa muscular e da força;

- engrossamento da voz;

- aumento da oleosidade da pele e decorrente surgimento de acnes;

- aumento do clitóris;

- interrupção das menstruações;

- redistribuição da gordura corporal com redução da gordura de quadril e

coxas e aumento de  gordura no abdome, o que reduz as curvas da cintura

e quadril;

- atrofia do tecido mamário e do sistema reprodutor;

- tendência à calvície em indivíduos com predisposição genética;

- aumento da libido (desejo sexual) e da energia.

Fonte: Cartilha para homens trans e pessoas transmasculinas feita pela Rede Nacional de

Pessoas Trans do Brasil – REDETRANS Brasil

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Lemos também é antropólogo e analisa que a terapia hormonal conecta dores e prazeres. Há uma sequência de dores que passam pelo caminho de encontrar um endocrinologista que atenda e prescreva a hormonização, comprar esse medicamento nas farmácias e finalmente, depois de aplicar, lidar com incompreensão da sociedade acerca das transformações que acontecem. Ao mesmo tempo, todas essas etapas são deliciosas quando superadas. “No momento em que você aplica o conteúdo daquela ampola não está entrando apenas a química produzida em laboratório, mas subjetividades e significações”, descreve. “Você já vê tudo aflorando e, na medida em que as transformações acontecem, você não está vendo a molécula, mas está vendo o Kaio, o Pedro, o João ou o José nascendo e se reconhecendo”.

"É um processo libertador a partir do momento que o corpo passa a se

descaracterizar das imposições biológicas ligadas ao feminino" - Kaio

Lemos, presidente da Atransce

Enzo Raphael Lopes também deixou de menstruar, mas não pela injeção de testosterona. O vestibulando adotou uma medicação que bloqueia o sangue mensal. Sua motivação principal foram os sintomas de uma tensão pré-menstrual intensa. “Eu sentia muita dor e ficava indisposto, não saía de casa; mas nunca afetou minha identidade de gênero”, explica.

Como muitos homens trans, o estudante começou a se hormonizar sem qualquer acompanhamento clínico, mas decidiu parar e buscar orientação médica. Entretanto, o caminho tem sido tortuoso.  “Não tomo faz mais de um ano e meio. Tento acompanhamento para voltar a tomar da forma correta, mas não consigo desde a época que parei”, conta. “A dificuldade é que não tem ambulatório em Fortaleza.”

 

O difícil acesso aos serviços de saúde, aliado à ansiedade em começar o tratamento de adequação das características corporais faz com que muitos homens trans iniciem o uso de hormônios por conta própria. Entretanto, é fundamental que seja realizada uma avaliação médica antes do início do tratamento hormonal, bem como um acompanhamento médico durante o uso de hormônios. O terapia psicológica durante essa transição também é recomendada.


“O único hospital que poderia nos ceder o atendimento apropriado seria o Hospital das Clínicas, como funciona nas cidades que têm o ambulatório, mas aqui não tem. Já tentei atendimento de toda forma e nada” - Enzo Raphael Lopes, estudante, 19 anos

Em Fortaleza, não existe qualquer ambulatório transexualizador que disponha de equipes multidisciplinares para acompanhar os processos transitórios. O compromisso para a criação do espaço de atendimento médico especializado foi firmado pelo Estado em audiência pública realizada em junho de 2017. A entrega do Serviço de Ambulatório para Atendimento à Pessoa Trans do Ceará, por meio da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa),  estava prevista para outubro de 2017. 

 

Lemos conta que a referência para o atendimento de pessoas trans na Capital é uma única pessoa: a ginecologista e sexóloga Débora Britto. "Ela fez os primeiros atendimentos de homens trans no Ceará no Hospital de Saúde Mental de Messejana, quando era voluntária no Ambulatório de Transtornos da Sexualidade Humana (Atash)." Atualmente, Débora atua na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). "Ela abre um espaço. Hoje a Meac atende homens trans porque ela está lá, em pé de luta, demarcando o lugar como espaço para corpos biologicamente femininos. Agora, ela é uma pessoa para não sei quantas outras", pondera. “Já ouvi falar de homens trans que conseguiram atendimento em Unidade Básica de Saúde, mas se conta nos dedos.” 

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